quarta-feira, 11 de novembro de 2009

“NÃO HÁ UM BOOM DE LUXO NO BRASIL”

Carlos Ferreirinha, dono da MCF Consultoria

por Carlos Sambrana*

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Ex-presidente da Louis Vuitton no País e atualmente no comando da MCF, consultoria especializada em gestão de empresas de luxo, Carlos Ferreirinha, 40 anos, é considerado uma espécie de oráculo do mercado de alta renda no Brasil.

De Marc Jacobs a Rei do Mate, de Stella McCartney a Casas Bahia, mais de uma centena de empresas já o procurou para decifrar o comportamento dos consumidores classe A. Tanto é que, desde que fundou sua consultoria, há oito anos, treinou nove mil profissionais. Na entrevista que segue, ele revela como os consumidores mudaram, o que as empresas estão buscando e analisa o mercado nacional. "O que há no Brasil é uma demanda reprimida", diz Ferreirinha. Acompanhe:

DINHEIRO - Atualmente, muitas empresas que trabalham com o público de massa estão usando técnicas de gestão do luxo. O que explica esse fenômeno?

FERREIRINHA - Há uma mudança profunda no comportamento de consumo das pessoas.

Para o indivíduo, não basta mais uma linguagem em cima da qualidade do produto e do serviço. Isso virou commodity. Você olha para o lado e enxerga uma quantidade enorme de produtos e serviços extraordinários. Existe, por exemplo, um posto de gasolina, entre Joinville e Jaraguá do Sul, chamado Rota 66. Quando você para o carro para abastecer, vem um indivíduo estendendo um tapete vermelho na porta do seu carro. Se você não sair do carro, vem um outro frentista com uma bandeja te oferecendo água, chá, bolacha. Eu falo para os executivos da TAM, que são meus clientes: "Vocês percebem que o posto de gasolina, no interior, entre Joinville e Jaraguá do Sul, já alcançou o nível de serviço de bordo?" A equiparação do nível dos serviços já é muito alta.

DINHEIRO - Como se diferenciar?

FERREIRINHA - Nas experiências, no diálogo emocional, na capacidade e na habilidade do indivíduo de estimular o outro pela observação.

Isso virou obrigação. Só que para isso você tem que recapacitar o indivíduo para olhar para o cliente. Ele tem que ler o consumidor não mais por renda, mas pelo comportamento. As coisas mudaram. Acabou essa palhaçada de fidelidade.

Isso é de uma época em que só produto fazia diferença. As marcas têm que surpreender com algo diferenciado.

DINHEIRO - Mas o que é esse algo diferenciado?

FERREIRINHA - É conseguir surpreender acima do inesperado. Que seja um produto inovador ou o treinamento daquele indivíduo para que ele seja capaz de observar o cliente com mais atenção. Falo para o Michael Klein [presidente da Casas Bahia: "Você não precisa virar uma Fast Shop, mas tem que se perguntar o que leva um indivíduo a comprar um Bentley mesmo 100 anos depois de essa marca ter sido fundada. O que leva um indivíduo a fazer fila para comprar bolsa Hermès?" Se você entende o que está por trás disso, talvez você consiga vender a sua televisão por R$ 2,1 mil e não por R$ 2 mil.

DINHEIRO - No caso das Casas Bahia, por exemplo, como é possível oferecer esse serviço diferenciado sem parecer pedante?

FERREIRINHA - A primeira coisa a ser feita é desconstruir o processo levando o vendedor da Casas Bahia a entender que ele faz o mesmo movimento de consumo aspiracional no dia a dia dele. E, se ele tivesse a chance de estar na posição daquele cliente, ele também compraria produtos desnecessários. Quando aquele vendedor da Casas Bahia vai vender aquela televisão de LCD de R$ 2 mil divididos em dez parcelas, ele pode muitas vezes pensar: "Para que uma pessoa precisa comprar uma televisão de LCD?"

Eu digo para ele: "O cliente não precisa e nem você", e ainda mostro de uma forma bem simples que eles também fazem esses movimentos diferenciados. Nas convenções da Casas Bahia, pergunto: "Quem faz barba com a Gillette Mach 3?" Quase todos levantam as mãos.

Mach 3, uma gilete de R$ 22. Para que se existe uma Bic de R$ 3,50? Eles têm que entender que o movimento de consumo é o mesmo, acontece com todos. Um dia desses, vi que o consulado português lançou no Brasil um serviço premium. A Perdigão, isso mesmo, a Perdigão, antes de virar a Sadigão, lançou uma campanha no mercado que virou escola dentro da MCF. Muitos podem nem ter percebido, mas estava lá a Coleção Salaminho e Mortadela Ouro. Coleção é termo de moda, ouro tem a ver com a joalheria, com o raro. A Perdigão posicionou o salaminho num patamar premium!

DINHEIRO - A mudança de abordagem dos funcionários melhora as vendas das empresas?

FERREIRINHA - É claro que sim. O tíquete médio aumenta e, mais do que isso, é bacana ver como os funcionários também mudam e reconhecem essa diferença. Recentemente, fizemos um treinamento com uma loja de varejo em Campinas e uma das nossas áreas era a capacitação dos funcionários. Estava lá a dona Severina, que serve o café, e ela disse que havia ido a uma grande loja e desistido de comprar porque chegou no lugar e o vendedor nem olhou para ela.

Aí falei: "Dona Severina, imagine que a senhora está numa loja servindo o café e serve para todos indiscriminadamente. Agora vamos imaginar que a Paula, a vendedora da loja, chega para a senhora lá dentro e diz quem são as clientes para a senhora oferecer o café chamando as pelo nome. Não muda?" Ela cristalizou aquilo de uma forma e disse que aquilo mudaria tudo. Ela percebeu que se relacionar de forma personalizada faz toda a diferença.

DINHEIRO - Falemos agora do mercado de luxo. A que se deve as vendas de marcas como Hermès, Mini Cooper e de outras grifes estarem além das previsões?

FERREIRINHA - Seria ingênuo da nossa parte achar que isso é uma ação isolada. Não é. O Brasil vive um momento importante economicamente, de inclusão social, de crescimento de riqueza. Se estivéssemos com a autoestima lá embaixo ou ferrados com a inflação, isso certamente não estaria acontecendo. Vivemos, acima de tudo, um momento de prosperidade e não é apenas econômica, é também uma prosperidade psicológica. O brasileiro virou novamente fã do Brasil. Isso é um lado importante. Sou muito pragmático nisso. As pessoas dizem que há um boom no mercado.

Não há um boom de luxo no Brasil, o que há é uma demanda reprimida de movimentos atrasados. Eu brinco que as pessoas estão transformando o bom em boom. Pegue os maiores grupos do mundo em gestão de luxo e veja quantas lojas cada um tem. Que marcas o LVMH tem no Brasil? Louis Vuitton e Dior. A-ca-bou, a-ca-bou! O grupo que tem quase 40 mil funcionários no mundo e portffólio de 60 marcas tem poucas lojas aqui. Boom é o que viveu o Leste Europeu até o ano passado, é o que vive a China mesmo com a crise. A Louis Vuitton tem dezenas de lojas na China e tem só cinco no Brasil. Se existisse boom aqui, ela estaria abrindo mais 20 lojas.

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DINHEIRO - Mas a Hermès, que acabou de ser inaugurada, está vendendo, bem acima das previsões, bolsas que custam mais de R$20 mil...

FERREIRINHA - A Hermès está vendendo muito bem? Tem que vender. Eu falo para o Richard [Richard Barczinski, diretor da Hermès no Brasil]: "Tem que ser burro para fazer a Hermès dar errado." Em qualquer lugar do mundo, a Hermès é um sucesso. Ela abre no Brasil numa cultura brasileira de consumo aspiracional, desse indivíduo que está disposto a comprar avião, helicóptero, lanchas extraordinárias. Você acha que esse indivíduo não vai comprar uma bolsa? Esse cara, que paga US$ 5 milhões num helicóptero, não se incomoda de pagar R$ 25 mil numa bolsa. A Hermès está para abrir no Brasil há 15 anos e não vai vender da mesma forma como agora porque não é real. Se fosse real, ela teria feito planejamento para ter dez pontos no País.

DINHEIRO - Na sua opinião, quais são as principais deficiências do mercado brasileiro?

FERREIRINHA - O custo Brasil é muito alto, o produto chega aqui num preço irreal e a capilaridade disso fica comprometida. Às vezes, você tem o consumidor, mas não tem o ponto de venda. Você quer abrir uma Vuitton ou uma Hermès, em Pernambuco, mas não tem um shopping que possa abraçar essa marca. Não tem linguagem de comportamento, de lidar com um investidor ou um operador como esse que demanda coisas diferenciadas. O grupo Multiplan [dono do Barra Shopping, do Morumbi Shopping, do BH Shopping], por exemplo, é o melhor operador do Brasil, mas não consegue lidar com marcas premium. O Multiplan ainda tem todos os operadores numa grande cesta. É preciso entender que algumas marcas exigem e demandam tratamentos diferentes.

DINHEIRO - Isso quer dizer privilégios?

FERREIRINHA - Não digo privilégios, mas condições diferenciadas. Quando você coloca uma Salvatore Ferragamo dentro do seu shopping, você imediatamente atrai algumas empresas que querem estar dentro do seu shopping porque você tem até Ferragamo. Essas grifes entregam tráfego, tíquete médio diferenciado, consumidor diferenciado. É uma contrapartida muito alta.

DINHEIRO - Quais são as características do consumidor brasileiro?

FERREIRINHA - É impulsivo. Não sabe lidar com renda discricionária, ele gasta no cartão de crédito o que não pode. Paga o mínimo do cartão dois anos depois que fez a compra. Estoura o limite do cheque especial, liga para o gerente e pede para estender o crédito. Temos que considerar também que o brasileiro não entende que uma bolsa custa R$ 10 mil.

Culturalmente, na cabeça daquele indivíduo, aquela bolsa custa dez prestações de R$ 1 mil. O brasileiro tem um viés de consumo americano, mas gosta de achar que é europeu. O brasileiro não admite que o produto que está nas vitrines de Paris não esteja aqui. Os outros países da América Latina trabalham com coleções passadas. O Brasil, esse país megatropical, compra a coleção de inverno em pleno verão porque é a que está sendo vendida lá fora. O brasileiro é novidadeiro.

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DINHEIRO - O brasileiro compra o rótulo ou o produto?

FERREIRINHA - Ainda compra a marca. Mas estamos numa primeira fase de educação. Há 17 anos, o brasileiro via no Lada, um carro da Rússia, de neve, cafona, medonho, o modelo mais incrível que existia. Assim éramos nós há 17 anos. Hoje, gostamos de Mini Cooper, de Smart, de Vuitton, de Hermès.

DINHEIRO - Mas ao mesmo tempo que compra esses produtos, o brasileiro tem vergonha de dizer que ganhou dinheiro. O que acontece?

FERREIRINHA - Acho que é um problema de autoestima. Nossa colonização foi exploratória. É intrínseco no Brasil ter a observação de que, quando o outro está se dando bem, é porque ele roubou ou sacaneou alguém. O Brasil também sempre foi uma das maiores sociedades católicas do mundo, tem a questão da culpa, do pecado, do dinheiro maculado. Por isso que eu acho que o Eike Batista é uma figura que tem uma função mercadológica brutal porque ele tem coragem de dizer o que ele fez, o que conquistou, o que comprou. Isso é fundamental numa educação de longo prazo.

*Entrevista concedida para a Revista IstoÉ Dinheiro de 4 de novembro de 2009.

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